Jogo de Búzios: Origem, Mitos, História e Conexão com as Tradições Afro-Brasileiras
- Hugo de Oxóssi
- 11 de jun.
- 5 min de leitura

Vozes que ecoam conchas
Há quem veja conchas e pense no mar. Nós, que trilhamos os caminhos da ancestralidade, vemos portais. Pequenos, brilhantes, silenciosos por fora, mas cheios de vozes por dentro. O Jogo de Búzios é esse canal entre mundos: mais do que um oráculo, ele é um instrumento sagrado que conecta vidas e mistérios, passado e presente, matéria e espírito.
Nascido do coração da cultura iorubá com o nome Ẹẹ́rìndínlógún — que significa "quatro que faltam para vinte" — e cultivado com fé no Brasil como Mèrìndílógún, o Jogo de Búzios floresceu como guia nas religiões afro-brasileiras. Seja em um jogo de búzios no terreiro ou em uma consulta de búzios online, ele continua a sussurrar verdades ancestrais a quem se abre para escutar.
Origens Mitológicas do Jogo de Búzios
Segundo a tradição, o oráculo dos búzios nasceu de uma disputa entre forças masculinas e femininas em Òrún, o mundo espiritual. Os Orixás homens tentaram conter o poder das Yabás, as Orixás mulheres. Em resposta, elas buscaram expandir sua influência no equilíbrio cósmico.
Dessa tensão surgiram acordos: Nanã passou a dividir o domínio sobre os ancestrais com Obatalá; Yemanjá recebeu de Oxalá o poder sobre os Ori — os destinos humanos; e Ossaim compartilhou suas folhas sagradas com todos os Orixás.
Entre todas, foi Oxum, deusa do amor e da fertilidade, quem ousou ir além. Diversos mitos — os Itan — explicam como ela conquistou o direito de jogar os búzios.
Em um deles, Oxum pede a Orunmilá que a ensine os segredos da adivinhação. Encantado por sua beleza e generosidade, ele concorda, desde que ela se torne sua esposa. O pacto é feito, e Orunmilá cria o jogo dos dezesseis búzios. Exu, porém, exige um sistema próprio — nascendo assim o jogo com quatro búzios. Dessa união simbólica, nasce o oráculo que conhecemos.
Outro Itan mostra Oxum usando astúcia e magia para aprender com Exu. Ela o cega temporariamente com um pó encantado e, enquanto finge ajudá-lo, recita os nomes dos Odùs ao entregá-los em suas mãos — memorizando cada um até dominar todo o sistema. Ifá, impressionado, reconhece sua sabedoria e a consagra como senhora da adivinhação. Em algumas versões, Oxum ainda serve Exu por sete anos, e um elo espiritual profundo se forma entre eles.
Há também quem conte que Yemanjá, buscando equilíbrio, presenteou Omulu com as conchas do mar. Ele, que possuía poucos bens, fez das conchas seu instrumento de poder, usando-as nos rituais e no oráculo.
Desde então, Oxum tornou-se senhora do mèrìndílógún, Exu o mensageiro entre mundos, e Orunmilá a fonte da sabedoria. E Omulu, que recebeu de Yemanjá as conchas, também passou a falar por meio delas.
Raízes Históricas e Diáspora
O Jogo de Búzios tem origem na prática ancestral dos iorùbá, sendo chamado de èrìndìnlógún em sua forma tradicional. Embora na Nigéria ele seja considerado menos prestigiado que o Oráculo de Ifá, nas Américas — especialmente no Brasil e em Cuba — ele ganhou centralidade e importância.
Durante a diáspora forçada entre os séculos XVI e XIX, os povos iorubás trouxeram não apenas sua dor, mas também seus deuses, cantos, folhas e oráculos. No solo brasileiro, o Jogo de Búzios se enraizou como o principal sistema divinatório do Candomblé, guiando decisões, rituais e a própria vida religiosa.
Diversas casas tradicionais, como o Axé Opô Afonjá, ajudaram a sistematizar o uso do jogo. Nomes como Bamboxê Obitikô e Ìyá Nassó deixaram marcas na organização dos métodos que ainda hoje são transmitidos nos terreiros.
Mais do que uma ferramenta, o Jogo de Búzios é também símbolo de resistência e adaptação. Seu uso atravessou perseguições religiosas, se camuflou sob santos católicos e sobreviveu como expressão viva da ancestralidade africana reinventada em solo brasileiro.

Jogo de Búzios e o Caminho de Ifá
O Jogo de Búzios e o Oráculo de Ifá compartilham raízes espirituais, mas seguem trajetórias distintas. Ambos se comunicam por meio dos Odùs, mas com diferenças marcantes: Ifá trabalha com 256 Odùs, oferecendo uma leitura extensa e profunda do destino, enquanto o jogo de búzios utiliza 16 Odùs principais, que trazem respostas mais diretas e voltadas ao presente.
No Ifá, as mensagens são interpretadas a partir de narrativas complexas e simbólicas guiadas por Orunmilá. Os Orixás se manifestam de forma indireta, por meio dos signos e histórias reveladas na consulta. Já no Jogo de Búzios, os Orixás falam de forma mais imediata e sensível, revelando-se diretamente nas quedas das conchas.
É importante lembrar que os nomes e interpretações dos Odùs variam entre os sistemas. Um mesmo Odu pode, por exemplo, ser chamado de Èjìla Sebora nos búzios e de Iwori Meji em Ifá — sinal de que, embora conectados, os dois oráculos traduzem visões distintas do sagrado.
Enquanto Ifá é ideal para mergulhos profundos na estrutura do destino e nas grandes questões de vida, o Jogo de Búzios se destaca pela clareza com que ilumina situações urgentes e concretas. Ambos os oráculos podem ser utilizados para questões imediatas ou de longo prazo, mas cada um se sobressai em sua especialidade: Ifá oferece uma visão ampla e estrutural, enquanto os búzios revelam com precisão as tensões do momento. Juntos, representam formas complementares de escutar o sagrado.
No Brasil, um Oráculo Vivo
No Candomblé, o Jogo de Búzios é tão essencial que se costuma dizer: “nada se faz sem consultar os búzios”. Antes de uma iniciação, de um sacrifício, de uma obrigação ou de uma festa, os búzios são jogados. Eles definem o Orixá regente da pessoa, os tabus a serem respeitados, os ebós a serem feitos.
Na Umbanda, embora o Jogo de Búzios não esteja presente em todas as casas, muitas o incorporaram como ferramenta de orientação espiritual. Por meio dele, praticantes e guias espirituais oferecem direcionamentos sobre saúde, relacionamentos, trabalho e caminhos de desenvolvimento pessoal. Mesmo não sendo um elemento originalmente umbandista, o oráculo conquistou respeito e espaço em diversas vertentes dessa tradição.
Hoje, com o avanço das tecnologias, também é possível fazer uma consulta de búzios online, mantendo a seriedade, o fundamento e o respeito que essa prática exige. A internet pode ser ponte, quando usada com reverência e propósito.
Conclusão: O Tempo que fala
O Jogo de Búzios é um espelho da alma, uma bússola ancestral. Ele não dita o futuro, mas revela as encruzilhadas na estrada. Ele não julga, mas aconselha. Ele não impõe, mas orienta. Ao jogar búzios, ouvimos histórias antigas contadas pelas conchas — histórias que ressoam com os nossos dilemas de hoje.
Que possamos continuar ouvindo essas vozes com atenção, com respeito e com o coração aberto. Pois, no fim das contas, os búzios não falam apenas de religião: eles falam de vida.
Se este texto ressoou com sua caminhada, compartilhe suas impressões nos comentários. Qual mito mais tocou você? Que perguntas você levaria a uma consulta de búzios?
Que os búzios sempre tragam sabedoria e clareza ao seu caminho!
Axé!
Referências:
Bascom, William: Sixteen Cowries: Yoruba Divination from Africa to the New World.
Braga, Júlio: O Jogo de Búzios.
Fatunmbi, Awo Fálòkun: Mérìndínlógún: Òrìsà Divination Using 16 Cowries: Revised and Extended Edition.
Plöger, Tilo; De Jagum, Marcos: Os Oráculos de Ifá: A comunicação com os deuses nas tradições do Ifismo Yorubá, Candomblé e Santeria. Kindle Edition.
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